E viu Deus que a luz era boa; e fez separação entre a luz e as trevas.
1. Introdução
Gênesis 1:4 marca um momento decisivo na narrativa da criação, onde Deus avalia o que foi criado e impõe ordem ao separar a luz das trevas. Esse versículo, embora breve, contém profundas implicações teológicas e filosóficas, evidenciando o caráter ordenado e intencional da criação divina.
2. Contexto Histórico, Cultural e Literário
Contexto Histórico:
No cenário do Antigo Oriente Próximo, muitos mitos cosmogônicos abordavam a criação como um processo de combate ou conflito entre forças caóticas. Em contraste, o relato bíblico enfatiza a intervenção ordenadora de Deus, que cria e, em seguida, avalia a criação, conferindo-lhe bondade.
Contexto Cultural e Religioso:
A ideia de “bondade” presente em “a luz era boa” reflete a visão hebraica de que tudo que é ordenado por Deus carrega um valor intrínseco. Essa perspectiva fortalece a identidade do Deus de Israel como um criador intencional, que estabelece limites e separações para promover a ordem no universo.
Aspectos Literários:
O versículo é estruturado de forma concisa: primeiro, Deus avalia a criação e, depois, estabelece uma distinção crucial entre dois elementos fundamentais – luz e trevas. Essa divisão não é meramente física, mas também simbólica, preparando o terreno para os conceitos de dualidade e ordem que perpassam toda a narrativa bíblica.
3. Exegese
“וַיִּרְא אֱלֹהִים” (Vayir’ Elohim – “E viu Deus”):
Esta expressão não se limita a indicar o ato de criação, mas destaca que Deus, após criar, observa atentamente sua obra. O verbo “וַיִּרְא” (vayir’), que significa “viu”, implica uma análise contemplativa e avaliativa. Isso sugere que a criação não é um processo mecânico ou aleatório, mas um ato intencional onde cada elemento é submetido à aprovação divina. O olhar de Deus revela uma preocupação contínua com a adequação e a finalidade de sua obra, assegurando que o que foi formado esteja em perfeita consonância com Seu propósito maior. Essa avaliação é o prelúdio para a ordenação subsequente, onde o que é bom é destacado e organizado de maneira harmoniosa.
“כִּי-טוֹב” (Ki-tov – “que era bom”):
O adjetivo “טוֹב” (tov) é carregado de significados que transcendem a mera apreciação estética. Aqui, “tov” denota não só beleza e harmonia, mas também funcionalidade, adequação e moralidade. Ao declarar que a luz era “boa”, o texto sublinha que ela possuía uma qualidade intrínseca que a tornava perfeita para o papel que deveria desempenhar na estrutura do cosmos. Essa bondade é vista como um reflexo do caráter divino, implicando que tudo o que é criado por Deus carrega um valor ético e um propósito ordenado. Assim, a luz não é apenas um fenômeno físico, mas um símbolo de perfeição e de uma ordem que se manifesta de forma completa e intencional.
“וַיַּבְדֵּל” (Vayyavdel – “e fez separação”):
O verbo “וַיַּבְדֵּל” (vayyavdel) destaca a ação decisiva de estabelecer uma distinção clara entre elementos anteriormente não diferenciados. Essa palavra transmite a ideia de que Deus, com sua autoridade soberana, impôs limites precisos para que cada componente da criação pudesse cumprir uma função única e bem definida. A separação entre luz e trevas representa, portanto, uma transição do estado caótico para um estado de ordem e clareza. Ao dividir esses dois elementos, Deus não apenas organiza o universo fisicamente, mas também estabelece uma hierarquia de valores – onde a luz simboliza a ordem, o conhecimento e a revelação, enquanto as trevas representam a desordem, o desconhecido e a ausência de verdade.
“בֵּין הָאוֹר וּבֵין הַחֹשֶׁךְ” (Bein ha'or uvein hachoshekh – “entre a luz e entre as trevas”):
Esta expressão enfatiza a delimitação precisa entre dois reinos antagônicos. A palavra “בֵּין” (bein) indica que há uma fronteira ou intervalo bem definido que separa a luz das trevas, ressaltando que ambos os elementos são essenciais, mas distintos. Na interpretação espiritual e moral, essa distinção simboliza a dualidade que permeia toda a existência: o contraste necessário para que se possa reconhecer e valorizar a verdade, o bem e o conhecimento. A luz, nesse sentido, não seria apreciada sem o contraste proporcionado pelas trevas. Assim, a separação não só ordena o cosmos físico, mas também estabelece um princípio de interdependência – onde cada oposto define e enriquece o significado do outro, promovendo uma visão de mundo em que a harmonia e o equilíbrio emergem da tensão entre contrastes fundamentais.
4. Implicações Teológicas
Bondade Intrínseca da Criação:
Ao declarar que a luz era “boa”, Deus estabelece um padrão de excelência e funcionalidade para tudo que é criado. Essa bondade reflete o caráter do Criador e serve como base para a moralidade e a ordem no universo.
Estabelecimento da Ordem:
A ação de separar a luz das trevas é fundamental para a organização do cosmos. Essa divisão não apenas estrutura o mundo físico, mas também estabelece uma dualidade que permeia a realidade – a distinção entre ordem e caos, conhecimento e ignorância, bem e mal.
Manifestação do Poder Criativo:
O ato avaliativo e a subsequente separação demonstram a autoridade e o controle absoluto de Deus sobre a criação, reforçando a ideia de que o universo opera segundo um plano divino e intencional.
5. Aspectos Filosóficos
Dualidade e a Natureza dos Opostos:
A separação entre luz e trevas convida à reflexão sobre os opostos fundamentais que estruturam a realidade. Filosoficamente, essa dualidade pode ser entendida como a base para a existência de contrastes – onde a presença de um determina a existência e a definição do outro. Em outras palavras, só se pode conhecer a alegria quando se experimenta a tristeza, assim como a luz é plenamente apreciada somente em contraste com a escuridão. Essa perspectiva ecoa conceitos clássicos sobre a necessidade dos opostos para a formação de um sistema coerente.
Metafísica do Ser e do Não-Ser:
A criação da luz a partir do comando divino levanta questões sobre a origem do ser. Através da palavra de Deus, o “ser” emerge do “não-ser” (ou do caos), propondo uma visão metafísica na qual a existência se organiza de maneira racional e ordenada a partir do nada.
Luz como Símbolo de Conhecimento e Revelação:
Historicamente, a luz tem sido associada à verdade, ao conhecimento e à revelação. Do ponto de vista filosófico, a ação de separar a luz das trevas não só ilumina o espaço físico, mas também simboliza a clareza mental e espiritual, representando a capacidade humana – e divina – de discernir e compreender a realidade.
6. Aplicações Práticas e Reflexões Contemporâneas
Busca por Clareza e Direção:
A avaliação de que a luz é “boa” pode inspirar a busca pessoal e coletiva por clareza e conhecimento. Assim como a luz dissipa as trevas, a sabedoria e a verdade são essenciais para orientar decisões e construir uma sociedade mais justa e esclarecida.
Criação de Limites e Organização:
O ato de separar a luz das trevas serve como uma metáfora para a importância de estabelecer limites e estruturas em diversas esferas da vida – seja no âmbito pessoal, social ou profissional – para que a ordem prevaleça sobre o caos.
Inspiração para a Renovação:
A ideia de que a intervenção divina trouxe ordem ao universo encoraja a esperança de que, mesmo em momentos de desordem ou incerteza, é possível transformar e renovar a realidade, buscando sempre o equilíbrio e a harmonia.
7. Conclusão
Gênesis 1:4 revela, de maneira sucinta e profunda, o caráter ordenado e deliberado da criação. Ao reconhecer que a luz é boa e ao separá-la das trevas, Deus estabelece não apenas um sistema físico, mas também um paradigma de dualidade e ordem que se estende a todas as dimensões da realidade. A análise dos termos originais, aliada às implicações teológicas e aos aspectos filosóficos, nos convida a refletir sobre a natureza da existência e sobre a importância de buscar a verdade e o conhecimento para transformar o caos em ordem. Assim, o versículo se torna um ponto de partida para a compreensão de como a intervenção divina e o estabelecimento de limites são fundamentais para a formação de um universo harmonioso.