E chamou Deus à luz Dia, e às trevas chamou Noite. E houve tarde e manhã, o primeiro dia.
1. Introdução
Gênesis 1:5 consolida o processo de ordenação iniciado nos versículos anteriores, estabelecendo não apenas a existência da luz e das trevas, mas também atribuindo-lhes identidade por meio do ato de nomeação. Ao chamar a luz de “Dia” e as trevas de “Noite”, Deus institui uma ordem temporal e define o ciclo básico do tempo, marcando o término do primeiro dia da criação. Esse versículo, embora breve, é fundamental para entender como a ação divina organiza o cosmos em uma estrutura inteligível e ritmada.
2. Contexto Histórico, Cultural e Literário
Contexto Histórico:
No Antigo Oriente Próximo, mitos cosmogônicos frequentemente tratavam a criação como um resultado de conflitos entre forças caóticas. Em contraste, o relato bíblico enfatiza a autoridade de Deus, que, através do poder de sua palavra, cria e ordena o universo de maneira pacífica e deliberada. O ato de nomear é uma prática comum que simboliza o exercício de poder e a imposição de ordem.
Contexto Cultural e Religioso:
Para a tradição hebraica, os nomes carregam um peso significativo, pois definem a identidade e o propósito de tudo que existe. Nomear a luz “Dia” e as trevas “Noite” revela a intenção divina de estabelecer limites e categorias essenciais para a experiência humana e para a compreensão do tempo. Essa ação reforça a ideia de que a criação possui uma estrutura intrínseca que reflete a ordem e a moralidade do Criador.
Aspectos Literários:
O versículo é marcado por sua concisão e pela escolha precisa de palavras. A repetição da fórmula “E chamou Deus” denota autoridade, enquanto a estrutura “E houve tarde e manhã” enfatiza a continuidade e o ritmo estabelecido na criação. Essa organização literária não só facilita a memorização do texto, mas também ressalta a perfeição do design divino, onde cada dia segue um padrão fixo de começo e fim.
3. Exegese
“וַיִּקְרָא אֱלֹהִים לָאוֹר יוֹם” (Vayikra Elohim la'or yom – “E chamou Deus à luz Dia”):
A ação de nomear é um ato de autoridade. Ao designar a luz como “יום” (yom – “dia”), Deus confere identidade e finalidade a essa manifestação luminosa, estabelecendo-a como a referência temporal e o símbolo da clareza e da ordem. O termo “יום” não apenas designa um período, mas também invoca a ideia de atividade, de tempo dedicado à revelação e ao trabalho, em contraste com o repouso representado pela noite.
“וְלַחֹשֶׁךְ קָרָא לָיְלָה” (Velachoshekh kara laylah – “e às trevas chamou Noite”):
Da mesma forma, ao chamar as trevas de “לָיְלָה” (laylah – “noite”), Deus define o antônimo necessário para que o conceito de dia ganhe sentido. A noite, associada à escuridão, repouso e mistério, contrapõe-se à atividade do dia, formando uma dualidade que permite a compreensão plena do tempo e da ordem natural.
“וַיְהִי-עֶרֶב וַיְהִי-בֹקֶר, יוֹם אֶחָד” (Vayehi-erev vayehi-boker, yom echad – “E houve tarde e manhã, o primeiro dia”):
Esta formulação marca a conclusão do primeiro ciclo diurno. A referência a “tarde” (עֶרֶב – erev) e “manhã” (בֹקֶר – boker) não só delimita o período, mas também ressalta a regularidade e a harmonia do sistema criado por Deus. A expressão “יום אֶחָד” (yom echad – “um dia”) indica que esse ciclo constitui a unidade fundamental do tempo, estabelecendo um padrão que se repetirá ao longo de toda a criação.
4. Implicações Teológicas
Autoridade e Soberania Divina:
O ato de nomear demonstra o poder absoluto de Deus sobre a criação. Nomear é exercer domínio e definir a realidade, e ao atribuir os nomes “Dia” e “Noite”, Deus impõe sua vontade e estabelece a ordem natural.
Instituição da Ordem Temporal:
Ao instituir o ciclo diurno, o versículo estabelece a base para a compreensão do tempo. O padrão de “tarde e manhã” não é apenas uma medida cronológica, mas um símbolo da regularidade e da harmonia que regem o universo, refletindo a ordem e a disciplina intrínsecas ao plano divino.
Fundamentação da Moralidade e da Ordem Cósmica:
A separação entre luz e trevas e a designação dos seus nomes revelam que toda a criação foi concebida com propósito. Essa ordem confere à existência uma dimensão moral, onde a distinção entre os opostos – o ativo e o passivo, o visível e o oculto – se torna um paradigma para a compreensão do bem e da justiça.
5. Aspectos Filosóficos
Dualidade e a Natureza dos Opostos:
A separação entre dia e noite ilustra a dualidade essencial que permeia a realidade. Só é possível conhecer e valorizar o conceito de “dia” em contraste com o “noite”. Em outras palavras, a experiência e a compreensão de um oposto dependem da existência do outro. Essa interdependência é um princípio fundamental na formação de um sistema coerente, onde os opostos se definem mutuamente e enriquecem o entendimento de cada um.
Metafísica do Ser e do Não-Ser:
A instituição do tempo – com seus períodos distintos de luz e escuridão – suscita questões sobre a origem e a natureza do ser. Através do comando divino, o ser (representado pelo dia, a atividade, a revelação) emerge do não-ser (representado pela noite, o mistério e o repouso), sugerindo uma ordem que se estabelece a partir da oposição, mas que se integra harmoniosamente em um sistema racional e ordenado.
Luz como Símbolo de Conhecimento e Revelação:
Historicamente, a luz é associada ao esclarecimento e à verdade. Ao definir a luz como “Dia” e contrastá-la com a noite, o texto enfatiza a importância do conhecimento e da clareza. Filosoficamente, esse simbolismo nos lembra que o entendimento pleno de uma realidade se faz através da distinção entre o que é revelado e o que permanece oculto.
6. Aplicações Práticas e Reflexões Contemporâneas
Estabelecimento de Ritmos e Rotinas:
O ciclo “tarde e manhã” instituído em Gênesis 1:5 reflete a importância dos ritmos naturais na vida humana. Essa estrutura inspira a adoção de rotinas equilibradas que valorizem tanto períodos de atividade quanto de repouso, promovendo um estilo de vida harmonioso e sustentável.
Busca por Organização e Ordem:
A ordem temporal demonstrada no versículo pode ser aplicada à necessidade de estabelecer limites e estruturas em diversas esferas da vida – desde a gestão do tempo pessoal até a organização de projetos e comunidades. Essa perspectiva reforça a ideia de que a disciplina e a clareza são fundamentais para o bem-estar individual e coletivo.
Inspiração para a Renovação e o Equilíbrio:
A regularidade do ciclo diário serve como metáfora para a capacidade de renovação e para a importância do equilíbrio. Assim como cada dia encerra um ciclo e inicia um novo começo, os indivíduos podem encontrar inspiração para transformar desafios e momentos de desordem em oportunidades para recomeçar e crescer.
7. Conclusão
Gênesis 1:5 não só completa o primeiro dia da criação, mas também estabelece os fundamentos da ordem temporal que governará toda a existência. Ao nomear a luz como “Dia” e as trevas como “Noite”, Deus confere identidade e propósito a esses elementos, instituindo um ciclo natural que reflete a regularidade e a harmonia do plano divino. A análise dos termos originais, juntamente com as implicações teológicas e os aspectos filosóficos, nos convida a refletir sobre a importância da ordem, da disciplina e do equilíbrio na criação. Esse versículo, assim, se torna um ponto de partida para compreender como a intervenção divina molda não só o universo físico, mas também a estrutura do tempo e da experiência humana.